Antes dos 10 anos de idade, Clarice Lispector enviou seus textos para a seção de ficção infantil de um jornal em Pernambuco e recebeu um não. A edição do jornal rejeitou os contos porque, enquanto todas as crianças escreviam textos narrativos, Clarice falava sobre sensações. Ninguém entendia direito, ainda mais vindo de uma menininha.
Mais tarde, ao longo de sua vida, Clarice repetiu inumeras vezes: “Não escrevo para agradar ninguém”. Já sabia desde cedo que não podia preocupar com os julgamentos alheios. Mesmo sem ser totalmente compreendida, continou a relatar suas cenas cotidiantas, suas inquietações e sensações e, com um estilo único que misturava prosa e poesia, hoje é considerada a grande escritora brasileira da segunda metade do século XX.
Leia também: A doceira de 76 anos que se tornou referência feminina na literatura
Nascida na Ucrânia, Clarice Lispector chegou ao Brasil com dois anos de vida. A família fugia da perseguição racial e da fome que ainda reveverberavam da Primeira Guerra Mundial. Sua mãe foi estuprada durante a guerra e contraiu sífilis, seu avô foi assassinado e o pai exilado para o outro lado do mundo.
Clarice viveu em Maceió, Recife e no Rio de Janeiro e, graças a obsitinação de seu pai, que vendia roupas para sustentar a mulher e as três filhas, estudou até muito além do que era habitual na época, até mesmo para meninas de famílias mais abastadas. Cursou direito na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, um dos redutos da elite.
Em 1940 Clarice publicou “O Triúnfo”, sua primeira história conhecida, e um ano depois publicou seu primeiro romance. “Perto do Coração Selvagem” lhe deu o prêmio Graça Aranha de melhor romance.
Perdeu a mãe antes dos 10 anos de idade e o pai antes dos 20. Casou-se aos 22 anos com um diplomata católico, teve dois filhos e viajou o mundo com o marido. Permaneceu casada durante 15 anos, vivendo a vida de esposa perfeita enquanto pulbicou “O Lustre” (1946), “A Cidade Sitiada” (1949) e “Alguns Contos” (1952).
Depois da separação, em 1959, a escritora retornou para o Rio de Janeiro e voltou a trabalhar como jornalista para garantir a independência financeira. Em 1960, publicou o livro de contos “Laços de Família”, aplaudido pela crítica, e em 1961 “A Maçã no Escuro”, romance que foi adaptado para o teatro.
“Paixão Segundo G.H.”, considerada sua obra mais importante, veio em 1963 e foi escrita em poucos meses.
Durante toda a sua vida, Clarice continou sendo um enígma. Ansiosa e com tendências depressivas, ela dormiu com um cigarro acesso em 1966 e ficou meses internada com queimaduras pelo corpo todo. Por pouco não precisou ter a mão direita amputada. Nunca recuperou a mobilidade.
Ainda assim, ela não deixou de escrever. No final dos anos 60, passou a se dedicar a escrita e publicação de livros infantis e algumas traduções de obras estrangeiras, que reuniu com palestras e conferências em várias universidades do Brasil.
Seu último livro, “A Hora da Estrela” (1977), foi escrito em maços de cigarro e no verso de cheques e tem menos de 90 páginas.
Clarice Lispector poderia ter se limitado com a recusa do jornal ainda quando criança. Clarice poderia ter se encolhido diante dos acontecimentos dolorosos que afetaram durante toda a sua vida, especialmente na infância. Ela poderia ter se julgado incompreendida inumeras vezes e escondido seus manuscritos do mundo. Mas Clarice não escrevia para agradar ninguém. Ela atendia apenas ao desejo da sua alma.
A grande escritora morreu de câncer em 1977, um dia antes de completar 57 anos. Antes de morrer mostrou que entendia exatamente sua tragetória neste mundo e disse a uma enfermeira: “Morre meu personagem!”.
Deixe um comentário